O caso Bosman

Como é sabido, a inspiração dos legisladores nacionais para a extinção do instituto jurídico-desportivo chamado “passe” veio de uma sentença proferida pelo Tribunal de Justiça da União Européia, o qual apreciou demanda proposta pelo jogador profissional belga, Jean-Marc Bosman, que, ao enfrentar as poderosas entidades que regulamentam o futebol europeu, pretendeu que fosse declarado que as regras de transferência e as cláusulas de nacionalidade não lhe eram aplicáveis, considerando-as incompatíveis com as regras do Tratado de Roma sobre concorrência e livre circulação dos trabalhadores.

Tal qual a extinção do passe no Brasil, a sentença Bosman causou grande apreensão no cenário futebolístico europeu, onde, segundo alguns, vigorava a chamada lei do silêncio em relação aos atos de poderosas entidades como a UEFA e a FIFA. Embora a sentença tenha mudado radicalmente as estruturas do futebol no âmbito da União Européia e do Espaço Econômico Europeu, a mesma, de certa forma, já era esperada, em decorrência de várias manifestações existentes neste sentido, inclusive julgamentos anteriores do próprio Tribunal de Justiça, que, inobstante não ter adentrado objetivamente no tema ora tratado, já preparava as bases para esta sentença.

A sentença proferida no caso Bosman influiu decisivamente no modelo brasileiro e, sobretudo, foi o paradigma da nova regulamentação da FIFA pertinente às transferências internacionais, que entrou em vigor, em escala mundial, a partir de 1 de setembro de 2001.

Da situação fática

Jean Marc Bosman, jogador de nacionalidade belga, jogava pelo Royal Club Liégeois (RCL), clube da primeira divisão daquele país, tendo um contrato que se expirava em 30 de junho de 1990, o que lhe garantia uma renda mensal de 120.000,00 BFR. Em 21 de abril de 1990, o RCL propôs ao citado jogador uma renovação contratual por mais uma temporada. Todavia, a proposta apresentada reduzia o salário percebido por Bosman, que agora seria de 30.000,00 BFR, o que representava o mínimo estabelecido pela federação nacional.

Não concordando com a proposta apresentada pelo clube belga, Bosman foi inscrito na lista de transferências, tendo sido fixado o valor de 11.743.000 francos belgas (BFR) como quantia a ser paga pelo clube interessado em adquirir o passe do jogador. Como não houve interesse de nenhum clube em pagar o valor estipulado para a transferência de Bosman, este estabeleceu contato com o clube francês Dunquerque, da segunda divisão daquele país, tendo sido fechado um contrato que garantiria um saldo mensal de 100.000 BFR, mais uma “prima de contratación”de 900.000 BFR.

Em 27 de julho celebrou-se também um contrato entre o clube belga RCL e o clube francês Dunquerque no qual se estipulava a transferência temporal, pelo prazo de um ano, mediante o pagamento por este último clube de uma compensação de 1.200.000 BFR, que seriam exigíveis quando da recepção pela federação francesa de futebol do certificado de transferência expedido pela federação belga. No mesmo contrato concedia-se ao Dunquerque a opção de adquirir definitivamente o vínculo do jogador mediante pagamento de 4.800.000 BFR. Tanto o contrato do jogador com o clube francês bem como o deste com o clube belga estavam sob condição suspensiva, qual seja, de que o certificado internacional de transferência chegasse à federação francesa antes da primeira partida do campeonato.

Em razão do RCL duvidar da capacidade financeira do Dunquerque, o mesmo não solicitou à federação belga que expedisse o certificado internacional de transferência, de maneira que os contratos acabaram tornando-se sem efeito. Destarte, em 31 de julho de 1990, o RCL suspendeu Bosman, impedindo-o de jogar naquela temporada.

Por tal razão, em 08 de agosto de 1990, o jogador ingressou com uma ação, junto ao Tribunal de 1 Instância de Liége, contra o RCL. Em paralelo à demanda principal, interpôs outra ação requerendo medidas provisórias. Em 09 de novembro de 1990, o juiz responsável por aquele órgão jurisdicional condenou, provisoriamente, o RCL e a Federação Belga de Futebol a pagar a Bosman o valor de 30.000 BFR, ordenando também que não obstaculizassem de qualquer maneira a transferência do jogador para qualquer outro clube. Concomitantemente remeteu ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial concernente à interpretação do art. 48 do Tratado, que tinha relação com a regulamentação das transferências de jogadores profissionais. A 28 de março de 1991, a Cour d’appel de Liége confirmou a condenação do RCL a pagar uma quantia mensal a Bosman bem como determinou que este clube  e a federação belga liberassem o jogador para qualquer clube que quisesse contratar seus serviços, sem a necessidade de pagamento de uma compensação financeira, sendo posteriormente este processo arquivado.

O Tribunal de Primeira Instância de Liége, em 11 de junho de 1992, declarou-se competente para conhecer das questões tratadas nesta demanda, declarando, por conseqüência, a admissibilidade das ações propostas por Bosman contra a RCL, a Federação Belga e a UEFA, determinando a inaplicabilidade das normas relativas às transferências e clausulas de nacionalidade, sancionando o comportamento destas três organizações, bem como requerendo a interpretação do Tribunal de Justiça da comunidade européia quanto às questões de direito comunitário. Posteriormente, em face da interposição do recurso de apelação, com efeito suspensivo, a Corte de Apelação transcorrendo sobre os termos da sentença de 1 grau e as razões expostas pelas partes, entendeu que realmente existia a possibilidade de que as normas relativas às transferências configurassem ofensa a algumas normas de direito comunitário. Por tais razões, e tendo em vista a questão prejudicial anteriormente suscitada, esta Corte remeteu a demanda à analise do órgão judicial máximo da Comunidade Européia, responsável absoluto pela interpretação das regras de direito comunitário.

Das conseqüências da sentença Bosman

O primeiro consectário lógico desta decisão e também o mais importante é que atingido o termo final do contrato de um jogador de futebol profissional com o seu clube, e sendo este jogador cidadão de um dos Estados-membros da União Européia, o clube antigo não pode impedir o jogador de assinar um contrato com o clube de outro Estado-membro, de modo que a entidade cedente não poderá mais exigir uma compensação financeira em caso de transferência de jogador.

Outra decisão importante é que um clube pertencente a um Estado-membro poderá contratar quantos jogadores estrangeiros quiser, desde que estes tenham nacionalidade em um dos países integrantes da Comunidade Européia. Por último, o Tribunal decidiu excluir qualquer eficácia retroativa da sua interpretação quanto aos efeitos no tempo da sua decisão sobre o sistema de transferências, salvo no respeitante àqueles que, como Bosman, tomaram medidas em tempo útil para proteger os seus direitos.

Caroline Baratz

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